“Todos ficaram repletos do Espírito Santo” (Atos 2,1-12)
Queridos irmãos,
Que o Senhor vos dê a Paz!
A tradição diz que o Capítulo Geral da Ordem coincide com a festa de Pentecostes, seguindo o desejo expresso por Francisco em documentos como a Regra Não-Bulada (cf. Rnb XVIII, 2) e que ele reitera na Regra Bulada quando diz: “Quando ele falecer (o Ministro geral), faça-se a eleição do sucessor pelos ministros provinciais e custódios no capítulo de Pentecostes, em que os ministros provinciais tenham sempre que se reunir juntos, onde quer que for estabelecido pelo Ministro Geral” (Rb VIII, 2). Este ano, por motivos que todos conhecemos bem, fomos obrigados a mudar este importante acontecimento para o mês de julho, esperando que as condições e os regulamentos governamentais o permitissem.
De modo algum gostaria de perder a oportunidade de dirigir-me a vós, queridos irmãos, nesta solenidade de Pentecostes, para partilhar convosco tudo o que esta celebração litúrgica inspira no meu coração e, ao mesmo tempo, para devolver ao Senhor e a cada um de vós a bondade e a bênção nestes últimos anos no serviço de Ministro Geral dos Frades Menores (cfr. Rnb XVII, 17-18). Esta restituição gostaria de expressar através de uma ação de graças profunda e sentida a toda a Ordem, às Clarissas e às Concepcionistas e a toda a Família Franciscana em geral, por ter me ajudado a ver a força e eficácia do dom da fraternidade enquanto nos comprometemos a ouvir a voz de Deus e a cumprir o que nos pede com fidelidade, perseverança e amor.
É inspiradora, sem dúvida alguma, a relação profunda que o pobre de Assis cultivou com a pessoa do Espírito Santo. Este fato pode ser evidenciado na forma como a terceira pessoa da Santíssima Trindade aparece tanto nos Escritos do santo como nas fontes hagiográficas (Cf. RnB XVII, 14; RB X, 8-10; CtaF2 48; LM X , 3, etc.). Francisco sentia o seu derramamento e presença tão próximos que atribui ao Espírito Santo a orientação e a direção da Ordem, chamando-o de Ministro da Ordem, como nos diz Tomás de Celano: “Em Deus não há acepção das pessoas, e o Ministro Geral da Ordem – que é o Espírito Santo – repousa igualmente sobre os pobres e sobre os ricos ». Ele até queria incluir essas palavras na Regra; mas não foi possível, por já estar bulada (2Cel CXLV).
Chama-me particularmente a atenção esta observação do biógrafo porque, em certo sentido, se presta a criar um vínculo direto com a cena que é descrita no livro dos Atos dos Apóstolos, uma leitura que é proposta na Solenidade de Pentecostes, “Apareceram então umas línguas como de fogo, que se espalharam e foram pousar sobre cada um deles. Todos ficaram repletos do Espírito Santo” (Atos 2,3-4). O adjetivo determinativo “todos”, que aparece 6 vezes, oferece uma chave de leitura e nos permite ver uma intenção totalizante: toda a casa (v.2); todos ficaram repletos do Espírito Santo (v.4); de todas as nações (v.5); Não são todos galileus? (v.7); Todos nós os ouvimos proclamar (v.11), todos disseram maravilhados (v. 12). Além disso, o adjetivo indefinido “cada um”, repetido três vezes, confirma essa forte ideia de inclusão e desejo de ampla participação em uma experiência do Espírito. Francisco, por sua vez, considera a efusão do Espírito uma bênção para todos, porque … “em Deus não há acepção das pessoas” (2 Cel CXLV).
Detenho-me por um momento sobre esta ideia porque nestes anos de serviço como Ministro Geral pude constatar que ainda devemos continuar trabalhando incansavelmente para combater o que o Papa Francisco chamou em sua encíclica Laudato Si’, a cultura do descarte, em relação direta com outro tema que ele mesmo chamou de “a globalização da indiferença” (cf. Mensagem do Santo Padre Francisco para a celebração do XLIX Dia Mundial da Paz, 1º de janeiro de 2016) que se expressa através de fenômenos como o ódio racial, a xenofobia, a aparição de personagens populistas que proclamam tempos messiânicos para a construção de uma sociedade como ela “deveria ser”. Uma mentalidade desta natureza preocupa-me sinceramente porque aos poucos vai tomando conta, como o joio que cresce entre o trigo (cf. Mt 13,24-52), fragmentando dramaticamente não só o ambiente político dos nossos países, mas também ameaçando a integridade de nossas sociedades, das famílias e até batendo nas portas de algumas de nossas fraternidades locais.
O texto dos Atos dos Apóstolos que narra essa ação especial do Espírito ilumina essa realidade de tal forma que não se pode negar, porque o cenário em que se produz tal acontecimento é extraordinariamente diferente, cheio de diversidade, de diferenças, de nuances e formas que não admitem uniformidade. É uma cena caracterizada pelo pluralismo, variedade e movimento (ruído semelhante a uma forte rajada de vento v. 2). Nada está parado, tudo está em movimento, algo está acontecendo, alguém está chegando. Todos repletos do Espírito Santo começaram a expressar…. o que o Espírito lhes havia dado (cf. v. 4).
O episódio de Pentecostes, além de evocar o cenário típico das teofanias veterotestamentárias, está ligado a outros momentos em que uma personagem importante é assistida de maneira especial pelo Espírito (por exemplo, João Batista, Lc 1,15; Isabel, Lc 1,41 ; Zacarias Lc 1,67; Pedro, Atos 4,8; Paulo Atos 9,17; 13,9; 13,9). No entanto, a plenitude do Espírito que os Apóstolos estão experimentando agora em 2,4 se caracteriza por um aspecto único, se trata do início dos tempos da Igreja, de um novo caminho que Jesus já havia anunciado, com o qual estaria entre os seus seguidores todos os dias até o fim do mundo (cf. Mt 28, 16-20). A ação realizada pelo Espírito Santo, ou seja, as línguas de fogo que se “separaram” e “pousaram” sobre cada um, nos faz pensar imediatamente no dom “carismático” que os Apóstolos receberam para realizar sua pregação e missão. O fogo, símbolo por excelência da presença divina, indica a vontade de Deus de envolver, quase invadir, toda a comunidade presente, conseguindo expulsar todas as sombras do medo e dando uma força interior capaz de transformar os corações dos presentes e criar uma autêntica comunhão.
O Papa Francisco diz: “Quando estamos bem e nos sentimos bem, nos esquecemos dos outros (algo que Deus Pai nunca faz), não nos interessamos pelos seus problemas, pelos seus sofrimentos, pelas injustiças que sofrem … Então o nosso coração cai na indiferença”. (Ibid. Mensagem para o 49º Dia Mundial da Paz). Após os eventos horríveis do assassinato de George Floyd em Minnesota, EUA, em 20 de maio de 2020, uma série de reações emergiu em muitas partes do mundo. Isso gerou protestos públicos que se espalharam de Minneapolis (EUA) a Manaus (Brasil), de Nova York a Joanesburgo, de Paris a Jacarta. Infelizmente, a situação de racismo sistemático, a manipulação da classe social e da casta, e outras categorias de exclusão estão presentes na nossa Ordem e na Igreja.
Pude ler alguns testemunhos que alguns frades me enviaram sobre as experiências de racismo ou exclusão na sociedade e na Ordem. Eles falam de momentos de intensa humilhação, um sentimento de traição e uma profunda ruptura no tecido da comunhão fraterna. As histórias dos irmãos também revelam o fato de que muitos de nós estão dispostos a fechar os olhos às situações de agressões direta ou indiretamente à dignidade humana. A festa de Pentecostes que celebramos hoje nos faz exigências radicais. Ele nos chama a “despertar” para as realidades que nos rodeiam e dentro de nós, para as estruturas e acontecimentos que expressam atitudes diretamente contrárias à nossa vocação humana, cristã e franciscana. O Espírito nos convida a uma conversão radical da mente, do coração e da ação (cf. Ef 4, 23-32) e a abraçar a visão de Deus para toda a humanidade e toda a criação. Pentecostes nos lembra que todos são bem-vindos, todos são respeitados, todos são convidados a oferecer suas contribuições únicas e distintas, todos compartilham a mesma dignidade e o mesmo destino. O dom do Espírito é “uma bênção para todos porque … em Deus não há acepção de pessoas!”
Queridos irmãos e irmãs, creio que a celebração do Pentecostes deve nos encorajar a viver uma experiência que abala os alicerces das nossas seguranças e expulsa de dentro de nós o medo de ser homens e mulheres “em saída”. Pentecostes deve ajudar-nos a abrir os olhos (cf. Lc 24, 13-35), a reconhecer a riqueza da diferença, da variedade de formas, cores, modos, mentalidades, abordagens, opiniões, perspectivas. Se ainda temos medo do confronto, de sair da nossa zona de conforto, de abrir espaços para partilhar um modo de ver, de apreciar, de julgar, é tempo de deixar trabalhar o Espírito do Senhor e seu santo modo de operar (cf. Rb X , 8).
Continuemos a rezar pelo próximo Capítulo Geral, para que o Espírito do Senhor, Ministro Geral da Ordem, nos conceda um momento de graça, efusão e inspiração para o bem da Ordem, da Igreja e do mundo em que vivemos.
Feliz festa de Pentecostes!
Frei Michael A. Perry, OFM
Ministro Geral e servo
Fonte: Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil