Ser luz e testemunha na inspiração de Jo 1,6-8.19-28

Imagem: El Greco (Wikipedia – Domínio Público)

A relação entre João Batista e Jesus

Estamos no período natalino. Jesus já nasceu, mas, liturgicamente, preparamo-nos para a sua vinda. O evangelho de hoje, Jo 1,6-8.19-28, nos apresenta Jesus como luz, segundo o testemunho de João Batista. Vejamos o que isso significa.

Estamos diante de uma belíssima construção literária de João, o teólogo, poeta e apóstolo de Jesus. Já idoso, lá pelos anos noventa, a sua pena registrou um dos últimos testemunhos sobre Jesus. João, em hebraico, Yohanan, significa Deus de misericórdia ou ternura de Deus, nos apresenta Jesus como messias, relacionando-o com outro João, o Batista. Por causa de seu testemunho, muitos entre nós receberam no batismo o nome de João.

Juntamente com os relatos da paixão, morte e ressurreição de Jesus, que é a base dos quatro evangelhos, João Batista é tão importante quanto. Primo de Jesus, filho do sacerdote Zacarias e de Isabel, ele iniciou seu movimento pregando no deserto, vivendo como um ermitão. Grande número de pessoas o seguia na esperança de que ele pudesse ser o messias esperado. João Batista e seu movimento que preparava a vinda do messias no fim dos tempos exigiam o batismo na água como condição para receber o perdão dos pecados, opondo-se, com isso, aos ritos de pureza dos sacerdotes do templo de Jerusalém. Jesus se identificou com o grupo de João Batista e por isso se deixou batizar por ele. Mais tarde, na missão, Jesus se distanciou do pensamento de João Batista, propondo que a salvação viria pela adesão à sua palavra, o que resultaria no perdão para aqueles que tivessem fé.

Feitas essas considerações, chamo a sua atenção para a estrutura literária do texto de Jo 1,6-8.19-28. Logo no início, três vezes aparecem, respectivamente, os substantivos testemunho e luz, seguidos do não sou. Entre o testemunho e a luz, no centro, está o principal: para que todos chegassem à fé por meio dele, o que corresponde ao modo de escrever do pensamento judaico. No entanto, quero dar destaque na nossa reflexão para os elementos luz e testemunho, não menos importantes para compreender a fé que herdamos dos apóstolos.

O primeiro ensinamento de João Evangelista é que Jesus é a luz que se contrasta com o testemunho do eu não sou o messias de João Batista. Por que chamar Jesus de luz?  É simples e profunda a resposta. Deus é a luz. O Eu sou é o nome de Deus revelado a Moisés (Ex 3,14). Deus, em sânscrito, uma das línguas indo-europeias mais antigas, se grafa dêva ou dywe, que vem de div e significa brilhar, e dew, luz, brilho. Assim da raiz de brilhar, luz, é que se originaram os substantivos Deus e dia. Daí que bom dia, bôdiê, é o mesmo que boa luz e bom deus. Em outras palavras, que Deus seja luz em seu caminho.[2] Olha que interessante, essa língua que tem parentesco com o latim, do qual originou o português, ter conservado a inspiração da relação entre o ser de Deus com a luz. Aliás, no Egito, os sacerdotes tinham a função de recolher no pôr do sol a luz e devolvê-la no início do dia. Os gnósticos acreditavam que viemos da luz e voltaremos para ela. Para nós, cristãos, Deus é a nossa luz. Isso basta! Jesus é a luz que veio nos mostrar a Luz plena, Deus. Isso é Natal!

Passemos ao segundo ensinamento de João, O Batista é o testemunho de Jesus. Volto novamente à estrutura literária do texto. João foi enviado por Deus, e os sacerdotes e levitas, pelos judeus. Os enviados deviam dar testemunho, após vivenciarem os fatos. Uma testemunha válida tinha que ser composta de, no mínimo, dois homens. João Batista testemunha Jesus, que testemunha Deus.

Para finalizar a nossa reflexão, atualizemos o ser luz e testemunha hoje. Testemunho é verdadeiro, quando vivenciado, experimentado. Quando um sofrimento na vida me fizer experimentar algo que nunca havia vivenciado, disso posso dizer que sou testemunha. Testemunho é diferente de informação, as quais superabundam em conteúdo nos zaps. Posso informar que sou cristão, o difícil é testemunhar. Posso ser de comunhão diária, mas injusto nas relações, portanto não sou luz nem testemunha de Jesus. A partir da prática de ser cristão é que vem a luz. Foi o que aconteceu com João Batista. Ele fez a amarga experiência de solidão na aridez no deserto até encontrar a Luz, Jesus. A partir daí, a sua vida mudou. Ele desapareceu para deixar brilhar a luz de Jesus. Foi martirizado, isto é, testemunhou com a própria morte a luz de Deus. Mártir, aliás, é o substantivo grego para testemunho. A vida é assim mesmo, quando vem a luz, é ela que deve orientar a nossa vida. Foi assim com João Batista. Que todos nós sigamos o seu caminho. Nem precisa mais ser com martírio, mas testemunho, com a prática da justiça, da paz e do bem.

Frei Jacir de Freitas Faria, OFM[1]

Fonte: Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil


[1] Doutor em Teologia Bíblica pela FAJE-BH. Mestre em Ciências Bíblicas (Exegese) pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma. É membro da Associação Brasileira de Pesquisa Bíblica (ABIB). Sacerdote Franciscano. Autor de dez livros e coautor de quatorze.

[2] FARIA, Jacir de Freitas. As mais belas e eternas histórias de nossas origens em Gn1-11: mitos e contramitos. Petrópolis: Vozes, 2015, p.11-12.