Francisco de Assis, ícone ecológico de uma relação fraternal com cada ser da natureza

Imagem de Jusepe de Ribera (1591-1692) | Domínio Público

A Covid-19 remete a um problema ecológico: a reação da Mãe Terra e da natureza que, como entes vivos, reagiram contra a sistemática agressão que já há séculos sofrem pelo processo produtivista voraz que não respeita os limites de sustentabilidade e destruiu os habitat dos vírus. Estes buscam em outros animais ou em nós humanos um novo habitat, de cujas células  se alimentam. É consequência do tipo de civilização técnico-científica que criamos a partir do século XVII que tratava a Terra e a natureza sem propósito e cujo único valor era estarem ao bel-prazer do uso dos seres humanos, para tirarem vantagens de todo tipo, especialmente, econômicas.

Foi abandonada a secular visão da Terra como Magna Mater e Pachamama. Só modernamente ,com a nova cosmologia e biologia, recuperou-se a noção da Terra como um Super Ente vivo que se auto-organiza sistemicamente para manter-se vivo e sempre produzir vida, denominada de Gaia.

Hoje com a Covid-19, a concepção da Terra-Gaia e Pachamama dos povos andinos, ganhou relevância. Ela  nos mostra a urgência de refazermos o contrato natural com ela, há muito violado, caso queiramos sustar seu contra-ataque contra a humanidade. Ela já enviou uma gama de vírus, entre eles o atual coronavírus, que, pela primeira vez, está  assolando todo o planeta. Tais vírus, ao lado do aquecimento global e de outros eventos extremos, são sinais enviados pela Mãe Terra para refletirmos e mudarmos nossa forma da habitar nela e mudarmos nosso modo destrutivo de produção.

A lição que importa tirar destes sinais  é que devemos voltar a sentirmo-nos parte da natureza e não seus donos e que nós, humanos, somos a porção inteligente da Terra com a missão de cuidarmos dela, como condição de nossa própria sobrevivência.

Para isso precisamos de figuras exemplares que nos mostrem que outra relação amigável e não destrutiva para com a Mãe Terra e para com a natureza é possível. Na verdade, é a única que se revela benéfica para ambas as partes deste contrato natural.

No Ocidente surgiu um cristão de excepcional qualidade humana e religiosa que viveu uma profunda fraternidade universal com todos os seres da natureza: Francisco de Assis (1284-1226).

Em sua encíclica da ecologia integral, Laudato Si’: sobre o cuidado da Casa Comum, o Papa Francisco apresenta São Francisco “como o exemplo por excelência pelo cuidado pelo que é frágil, vivida com alegria e autenticidade. É o padroeiro de todos os que estudam e trabalham no campo da ecologia, amado também por muitos que não são cristãos” (n.10). Diz mais ainda: “Coração universal, para ele qualquer criatura era uma irmã, unida a ela por laços de carinho; por isso sentia-se chamado a cuidar de tudo o que existe…até das ervas silvestres que deviam ter o seu lugar no horto” de cada convento dos frades (n.11.12).

O historiador Lynn White Jr., em 1967, em seu rumoroso artigo “As raízes históricas de nossa crise ecológica”, acusava o judeu-cristianismo, por causa de seu visceral antropocentrismo, como o principal fator da crise que nos dias atuais se transformou num clamor. Por outro lado, reconhecia que esse mesmo cristianismo tinha um antídoto na mística cósmica de São Francisco de Assis. Para reforçar a ideia sugeria que fosse proclamado “patrono dos ecologistas”, coisa que o Papa João Paulo II o fez no dia 29 de Novembro de 1979.

Efetivamente, todos os seus biógrafos, como Thomas de Celano, São Boaventura, a Legenda Perusina e outras fontes da época, atestam “a amigável união que Francisco estabelecia com todas as criaturas; enchia-se de inefável gozo todas as vezes que olhava o sol, contemplava a lua e dirigia seu olhar para as estrelas e para o firmamento”.

Dava o doce nome de irmãos e irmãs a cada uma das criaturas, as aves do céu, as flores do campo e até ao feroz lobo de Gubbio. Constituía fraternidade com os mais discriminados como  os hansenianos (leprosos) e com todos as pessoas, como com o sultão Melek el Kamel no Egito com quem teve longos diálogos e mutuamente se admiravam.

No homem de Assis, tudo vem cercado de cuidado, simpatia e enternecimento.

O filósofo Max Scheler, em seu conhecido estudo sobre “A essência e as formas da simpatia”(1926), dedica-lhe brilhantes e profundas páginas. Assevera que “nunca na história do Ocidente emergiu uma figura com tais forças de simpatia e de emoção universal como encontramos em São Francisco. Nunca mais se pôde conservar a unidade e a inteireza de todos os elementos como em São Francisco, no âmbito da religião, da erótica, da atuação social, da arte e do conhecimento” (1926, p.110). Talvez seja por esta razão que Dante Alighieri o chamou de “sol de Assis” (Paradiso XI,50).

Esta experiência cósmica ganhou uma forma genial no seu “Cantico di Frate Sole”. Ai encontramos uma síntese acabada entre a ecologia interior com a ecologia exterior.

Como o filósofo e teólogo francês, o franciscano Eloi Leclerc (+1977), sobrevivente dos campos de extermínio nazista,  mostrou, que para ele, os elementos exteriores como o sol, a terra, o fogo, a água, o vento e outros não eram  apenas realidades objetivas mas realidades simbólicas, emocionais, verdadeiros arquétipos que dinamizam a psiquê no sentido de uma síntese entre o exterior e o interior e de uma experiência de unidade com o Todo.

Estes sentimentos, nascidos da razão sensível e da inteligência cordial, são urgentes hoje se quisermos refazer a aliança de sinergia e de benevolência para com a Terra e seus ecossistemas.

Acertadamente ponderou o grande historiador inglês Arnold Toynbee: “Para manter a biosfera habitável por mais dois mil anos, nós e nossos descendentes, teremos de esquecer o exemplo de Pedro Bernardone (pai de São Francisco), grande empresário de tecidos do século XIII e seu bem-estar material e começar a seguir o modelo de seu filho, Francisco, o maior entre todos os homens que já viveram no Ocidente. O exemplo dado por São Francisco é que nós, os ocidentais, deveríamos imitá-lo de todo o coração, porque ele é o único ocidental que pode salvar a Terra”(El Pais,1972,p.10-11).

Hoje, São Francisco se tornou o irmão universal que se situa para além das confissões e das culturas. A humanidade pode se orgulhar de ter produzido um filho com tal amor, com tanta ternura e com tão grande cuidado para com todos os seres, por menores que parecessem.

Ele é uma referência espontânea de uma atitude ecológica que se confraterniza com todos os seres, convive amorosamente com eles, os protege contra ameaças e os cuida como irmãos e irmãs. Ele soube descobrir Deus nas coisas. Acolheu com jovialidade as doenças e  as contradições da vida. Chegou a chamar de irmã a própria morte. Estabeleceu uma aliança com as raízes mais profundas da Terra e, com grande humildade, unia-se a todos os seres para cantar louvores, junto com eles e não apenas através deles, como diz em seu Cântico, à beleza e à integridade da criação.

Como arquétipo, Francisco penetrou no inconsciente coletivo da humanidade, no Ocidente e no Oriente e de lá anima as energias benfazejas que se abrem à relação amorosa com todas as criaturas, como se estivéssemos ainda no paraíso terrenal (cf.L.Boff, Francisco de Assis: saudade do paraíso, Vozes 1986).

Ele mostra que não somos condenados a sermos os agressores pertinazes da natureza mas o seu anjo bom que protege, cuida e transforma a Terra uma Casa Comum de todos, da comunidade humana e terrenal. Ele suscita em nós a saudade de uma integração que perdemos por causa da ruptura que estabelecemos com a natureza. Com ele, nos convencemos de que, por todos os lados,  há ainda sinais do paraíso terrestre que nunca se perdeu totalmente.

Podemos, com o espírito de São Francisco, o irmão universal, recriá-lo dentro de nosso interior  e irradiá-lo para o exterior, como lição aprendida do confinamento social forçado.

Leonardo Boff ¹

Fonte: Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil (OFM)


 

¹ Leonardo Boff é ecoteólogo, filósofo e escreveu: “Francisco de Assis: ternura e vigor”, 12ª edição, Vozes 2009.